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[Resenha] Confissões do Crematório


Imagine a situação: você está deitado, tenta mandar informações ao seu cérebro, mas as respostas parecem não surtir efeito, sobressaindo a imobilidade. Em segundos, seu coração começa a perder a força e a respiração junto as suas pulsações manifestam seus últimos sinais. A alma vai e o corpo fica e, enfim, a morte reina.


A leitura do primeiro parágrafo deve ter causado certo desconforto. Afinal, a morte é a nossa velha e temida inimiga, desde o nascimento. Vilém Flusser já pronunciava o nosso repúdio à morte e o nosso constante desespero em tentar camuflá-la, maquiá-la, enfim, esquecê-la. Para o filósofo, a comunicação tornou-se o principal mecanismo usado pelos seres humanos a fim de afastar duas ameaças: a solidão e a morte. A ênfase exagerada na morte, até aqui, não é uma repetição desnecessária. Na verdade, eu a enfatizo, pois ela está intimamente relacionada à resenha de hoje, em que apresento as minhas considerações sobre Confissões do Crematório.



Não existe manual sobre a Arte de Morrer disponível na nossa sociedade, então decidi escrever o meu. É direcionado não só aos religiosos, mas também ao número crescente de ateus, agnósticos e vagamente “espiritualizados" entre nós.


Escrito por Caitlin Doughty, Confissões do Crematório foi publicado pela editora DarkSide Books este ano. Doughty, além de escrita, é agente funcionária e tem um canal no YouTube, onde a autora compartilha com os internautas suas ideias em torno da morte e da indústria funerária.


Em Confissões do Crematório, somos convidados a conhecer um pouco mais sobre a vida de Doughty e, ao mesmo tempo, a relação da autora com a morte. A escritora, assim como qualquer um de nós, cresceu em uma cultura onde a morte nunca teve destaque, pelo contrário sempre foi reprimida. A relação da autora com a morte começa a tomar novos rumos justamente quando ela presencia um acidente que leva ao falecimento de uma garota. Entretanto, Doughty passa a ver a morte sob outro ponto de vista a partido do momento em que inicia a sua carreira funerária, trabalhando em um crematório.



A Westwind Cremation & Burial mudou minha compreensão da morte. Menos de um ano depois de tirar meus óculos que viam o mundo da cor de cadáver, eu mudei de pensar que era estranho não vermos mais cadáveres a acreditar que a ausência deles era a causa fundamental dos maiores problemas do mundo moderno.


Desde o inicio do livro, percebemos o principal objetivo da autora assim que conhecemos a sua experiência como agente funerária. Assim, durante todo o livro, a autora tenta no convencer a ver a morte por meio de outra perspectiva. Tentar entender que a morte é uma consequência natura da vida. Em busca de defender os seus argumentos, Doughty nos proporciona reflexões incríveis. Uma das coisas que me fiz pensar foi a nossa recusa da morte. Como a autora relata, estamos o tempo todo tentando nos afastar da morte e, com isso, buscamos desesperadamente meios de prolongar a vida. E é justamente essa dificuldade de enfrentar a realidade que nos causam tanto medo da morte.


Confissões do Crematório não é apenas um relato pessoal da autora. Nele, temos contato com vários conhecimentos interessantíssimos relacionados à morte. A escritora traz para a narrativa diferentes visões sobre a morte. Diante disso, resgata culturas antigas, ao passo em que apresenta relatos históricos, antropológicos, cinematográficos, filosóficos, artísticos e literários. Diante da riqueza de detalhes, somos convidados a perceber os diferentes pontos de vista desenvolvido em relação à morte e, melhor, para nos convencer a vê-la sobre outra perspectiva.



O mitologista Joseph Campbell nos diz sabiamente para desprezar o final feliz, “pois o mundo que conhecemos, que vimos, só oferece um final: a morte, a degradação, o desmembramento e a crucificação do nosso coração com o fim daqueles que amamos”.



É interessante frisar que as referências a diferentes autores de variados campos de estudos não deixa o livro maçante. Doughty com muita maestria desenvolve uma ótima concatenação entre teoria e a sua história real de vida. E assim, vamos aprendendo com a escritora porque ela tem tanto empenho em nos apresentar a morte e, mais do que isso, a tentar nos convencer a resignificar a nossa relação com ela.


Partindo do ponto de vista que todos estávamos fadados a morte, esse é um livro para todas as pessoas. Já na capa temos o aviso: “Um livro para quem planeja morrer um dia”. Confissões do Crematório é aquele livro que você começa a ler sem muitas expectativas, mas ao poucos vai se encantando, isso porque somos levados a reflexões incríveis e a repensar a nossa própria existência.


O livro é escrito em primeira pessoa e muito bem escrito. Achei incrível o modo com que a autora consegue trabalhar com uma tema tão pesado, com uma leveza admirável. O texto despojado e muito bem humorado nos envolve, nos encanta e nos ensina muitas coisas. Dessa forma tão encantadora de narrar, eu não poderia deixar de me apaixonar pela obra e, mais do que isso, me fez repensar o meu ponto de vista em relação à morte.



Nunca é cedo demais para começar a pensar na própria morte e na morte das pessoas que você ama. Não quero dizer que pensar na morte em ciclos obsessivos, com medo do seu marido ter sofrido um acidente horrível de carro ou do seu avião pegar fogo e despencar do céu.


Não bastasse todas as qualidade excepcionais, o livro ainda apresenta uma embalagem incrível, desenvolvida tão delicadamente pela editora DarkSide Books. A meu ver, a capa e a diagramação do livro são sensacionais. O conjunto de cores, relevos e detalhes brilhantes tornou o livro fascinante. Não tem como negar que é um dos mais lindos da minha estante.


Enfim, ler Confissões do Crematório foi uma experiência muito boa. Eu simplesmente adorei e tenho certeza que qualquer um é capaz de se envolver com ele. Por isso, recomendo a todos, sobretudo àqueles que ainda têm dificuldade para lidar com a morte. A própria autora diz que a morte deixa muitas marcas, mas, sendo um fim inevitável, cabe a nós reconhecê-la e nos preparar para não estarmos desprevenido quando aparecer em nossa vida.



Nota: 4 INTERESSANTE

Informações adicionais

Autora: Caitlin Doughty

Tradução: Regiane Winarski

Editora: DarkSide Books

Ano: 2016

Páginas: 256

Assunto: Agentes funerários/Biografia

Tipo de capa: Capa dura

Sou jornalista formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmento, faço mestrado de Comunicação na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp).

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Trecho de livro

Tudo muda, penso. Esta é a única constante. Todos crescemos (trecho de O último adeus)

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