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[Resenha] Fazendas ásperas


Não é sempre que temos o privilégio de conhecer obras ilustres. No entanto, de tempo em tempo, elas cruzam os nossos caminhos. Na maioria das vezes, aparecem de formas inesperadas. Chegam sorrateiramente, nos arrebata, nos surpreende através da simplicidade, sobressaem-se por meio dos pequenos detalhes e superam todas as nossas expectativas. Os bons livros não só entram em nossas vidas, eles se embrenham entre os meandros do nosso ser, fixam morada e nunca mais vão embora, pelo contrário, fundem-se a nossa alma e tornam-se parte de cada um de nós. Fazendas ásperas foi a minha última leitura e é a grande inspiração para o desenvolvimento dessa abertura, que representa perfeitamente a minha relação com a obra.



Geny Vilas-Novas nasceu em Minas Gerais e morou em várias capitais do Brasil até se fixar no Rio de Janeiro, onde vive atualmente. Participou de diversas antologias de contos, entre as quais Tempos de Nassau: um príncipe em Pernambuco (Bom texto, 2004), Ásperos e macios: histórias de amor e vingança (Bem Texto, 2010), e O Rei, o Rio e suas histórias (7Letras, 2012). É autora dos romances Adeus, rio Doce (Bom Texto, 2006), Flores de vidro (7Letras, 2015) e Onde está meu coração? (7Letras, 2015)

Meu contato com Fazendas ásperas foi proporcionado pela agência Oasys Cultural. Escrito por Geny Vilas-Novas, o livro ganhou vida no ano passado (2017), por meio da editora 7Letras. Categorizado como romance brasileiro, o livro pode ser considerada uma verdadeira obra de arte. Transitando entre a ficção e a realidade, Vilas-Novas cria uma narrativa forte, capaz de captar a atenção do leitor, transmitindo a ele emoções inimagináveis.


Se pudesse resumir o livro em poucas palavras, diria que se trata de uma narrativa sobre memória e escrita criativa. Em Fazendas ásperas, Vilas-Novas inicia uma saga a fim de resgatar a história de sua família. Na tentativa de conhecer a sua árvore geneológica, a autora incorpora reflexões interessantes e incríveis na história. Na primeira parte, ao passo em que conhecemos a história da narradora, acompanhamos um ensaio sobre o ato de escrever, no qual a autora trata o escritor como um mentiroso nato. De acordo com a autora, o escritor precisa romancear, deixar de lado o viés histórico, inventar, mentir e ser capaz de convencer o leitor sobre a mentira. Logicamente que existem conotações por trás dessa reflexão, mas que, quando analisadas, apresentam um fundo de verdade.


À medida que lemos, percebemos que, as teorias apontadas pela autora, em relação à escrita, materializa-se em sua narrativa. Em um dado momento, Vilas-Novas diz que uma obra só é digna de roubar o tempo de um leitor se ela tem inovações. Fazendas ásperas é um projeto experimental que busca inovar. Trata-se de um livro com capítulos curtos, soltos e sem compromisso com uma cronologia histórica. Arrisco a dizer que, ao escrever, a autora faz um retrato sobre a memória humana, caracterizada pela confusão, disformidade, desorganização e em constante mudança e adaptação.


A autora escreve cada um dos capítulos com muito carinho. Com uma escrita impecável e dinâmica, não economiza na linguagem figurada, o que traz uma beleza especial à história. As metáforas muito bem empregadas enchem os olhos dos leitores mais atentos e os encanta. Além disso, a obra traz outras inovações, como a utilização de diálogos sem a representação comum de travessão ou aspas, bem como a incorpora elementos fictícios para retratar a realidade. Segundo a autora, a história de um livro precisa “ser viva, fazer o sangue pulsar nas veias de quem está lendo”. Foi justamente essa sensação que tive lendo Fazendas ásperas.


Ao meu ver, o livro é uma obra polifônica. Ao trabalhar com o termo dentro do conceito de dialogismo, o pesquisador russo Mikhail Bakhtin diz que toda obra é um compilado de narrativa já existentes. Nesse sentido, encontramos na história referências musicais, históricas e do cotidiano, como Águas de Março (Elis Regina), Cálice (Chico Buarque), a famosa frase dita pela Maria Antonieta: “Se não tem pão, pois que comam brioches”, entre outros.


Percebemos também o resgate de narrativas quando a autora retrata no romance fatos que marcaram não só o Brasil, mas também o mundo. Vila-Nova traz para sua história fatos como, por exemplo, as manifestações ocorridas no Brasil, o desastre ambiental ocorrido em Mariana em 2015 e o caso da criança síria encontrada morta em uma praia turca (a fotografia do menino ganhou manchetes no mundo todo).


A memória representa um segundo ponto de destaque em Fazendas ásperas. Ao narrar as dificuldades de revisitar e conhecer o passado de sua família, a autora traz reflexões interessantes sobre a memória. No romance, fica evidente as dificuldades de se obter informações sobre o passado, que a memória de um mesmo evento pode ser divergente de pessoa para pessoa e que o tempo apaga vestígios sobre a vida, muitas vezes, irrecuperáveis. Esta última questão torna-se mais nítida quando a autora fala sobre o desastre ocorrido em Mariana. A lama que devastou Bento Rodrigues soterrou mais do que apenas um local, como afirma a autora: “Como recuperar o que está debaixo de lama? Os bens afetivos, nem com todo dinheiro do mundo”.


Após terminar o livro, acredito que a obra não poderia ter outro nome, senão Fazendas ásperas. A palavra áspera pode assumir diversos significados como rude, difícil de tratar, de sabor intragável, superfície irregular, entre outros. O aspecto áspero do romance é percebido nos eventos conturbados sobre a família da autora, nas reflexões pessimistas em torno da natureza humana e na falta de regularidade da memória, que jamais pode ser alcançada em sua plenitude.


Fazenda ásperas é um livro para se encantar com a brincadeiras linguísticas desenvolvidas pela autora, para se emocionar com a história da família da autora, para se deliciar com os toques de ficção dado à realidade, para refletir sobre aspectos importantes sobre a vida e nosso papel no mundo. Segundo a autora: “Se uma obra não possuir corpo e alma, ela morre”. Parafraseando as palavras de Vila-Nova, diria que Fazenda ásperas tem corpo e alma, logo não morrerá, sobreviverá ao tempo.


Leitura obrigatória para os apaixonados por literatura!


NOTA 5 -SENSACIONAL

Informações adicionais

Autor: Geny Vilas-Novas

Editora: 7Letras

Ano: 2017

Páginas: 209

Assunto: Romance brasileiro

Tipo de capa: Brochura

Sou jornalista formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmento, faço mestrado de Comunicação na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp).

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Trecho de livro

Tudo muda, penso. Esta é a única constante. Todos crescemos (trecho de O último adeus)

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